12.4.11

Geometria

Não sei se te guarde o lugar, já que não o visitas, ou se o faça desnascer para depois sobrar só o espaço: geométrico.

1.3.11

O Senhor do Sorriso

Na minha aldeia não há um Senhor do Adeus, mas existe o Senhor do Sorriso. A cada pessoa que passa, a cada carro que calca o alcatrão, ele materializa um sorriso largo e translúcido do tamanho do Mundo.
Quando estou no pátio da minha avó e vejo o seu semblante a dobrar a esquina do muro da igreja, caiado de branco, desfaço-me num cumprimento alegre e impulsivo. Corro para lhe dar um abraço forte. O Senhor do Sorriso fica com cascatas límpidas nos olhos e protege-me ternamente nos seus braços quentes. Enquanto a minha face está deitada no seu ombro, sentindo os meus cabelos acariciados pelas suas mãos e a beberem do vapor exalado pela sua pele sinto a protecção, o amor e o carinho: voo. Penso: estremeço e acordo. Penso na crueldade pela qual o fazem passar, penso na sombra da solidão que o acompanha - sempre traiçoeiramente calada. Penso no sofrimento que as suas mãos engelhadas recolhem, dia após dia. 

16.2.11

« O que foi verdade e o que é, inevitavelmente, ficcionado, devido aos limites da memória, não importa; em última análise, a propriedade é objecto de ficção. O mais importante é libertar-me dos fantasmas, pois acarreto com as sombras de todas as coisas a que não tive coragem para colocar um fim. Isso reflecte-se, sobretudo, nos meus sonhos: ao contrário da crença habitual, não me parece que os sonhos sejam o espelho dos nossos desejos; cá para mim, acho que os sonhos são o espelho dos nossos horrores, dos nossos piores medos, da vida que poderíamos ter tido se, numa altura ou noutra, não fossemos incumensuravelmente cobardes. »

João Tordo in As 3 Vidas

6.1.11

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo
Cansaço.
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
(...)
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.


Álvaro de Campos in Poesias de Álvaro de Campos

3.1.11

Náufrago

Gostava eu de fazer das minhas lágrimas oceanos e do meu regaço rochedos sinuosos. Entregar-me, assim, como náufrago à imensidão daquilo que me compõe: dar o meu corpo à fúria das marés e perder-me entre os recônditos meio vazios, meio cheios. Tudo quanto afogasse era meu e tudo quanto ressuscitasse também; finalmente os pulmões encher-se-iam daquilo que sou.